Radiola #30 - 'A Tábua de Esmeralda' é uma preciosidade
O único defeito desse disco é acabar
Como é que pode um álbum de pouco menos de 40 minutos mudar tanto a música brasileira? “A Tábua de Esmeralda”, de Jorge Ben, foi lançado em 1974 e virou um dos maiores discos do país. E isso não sou eu quem diz, apesar de concordar bastante. Nas 12 músicas, o artista misturou samba, bossa nova, soul e rock, contou fofoca pela metade, mandou sentar, fez ode a uma peça de roupa. E fez história, claro.
Isso tudo sem falar nos tais segredos místicos e sobre alquimia que dizem que o disco carrega, principalmente pela imagem da capa. Ela é composta de ilustrações de Nicolas Flamel, escrivão e copista francês que viveu entre 1330 e 1418, que foi considerado um dos grandes nomes da alquimia. Flamel, inclusive, é personagem em uma das músicas. Mas não vou entrar aqui em detalhes sobre essas figuras (desenhadas e históricas) e nem sobre a relação do álbum com o livro de Hermes Trismegisto.
Pega uma ficha aí e dá play em “A Tábua de Esmeralda”.
O disco começa já com um puxão de orelha de Jorge Ben: “Salve! Não, não, senta! Senta! Não, não, senta. Não, não! Pra sair legal, senta. Então tem que dançar dançando. Dançando”. “Os Alquimistas Estão Chegando os Alquimistas” é quase uma convocação. Os tais alquimistas são apresentados como visionários que transcendem o tempo e são cheios de sabedoria.
À primeira ouvida, “O Homem da Gravata Florida” é só uma poesia sobre a peça de roupa musicada com um violão que cresce junto com a música. Mas aí não seria Jorge Ben. Nas plataformas de steaming não, mas na contracapa do disco, a música tem um complemento no nome: “A Gravata Florida de Paracelso”, escrito entre parêntesis. O que fortalece a versão de que o tal homem era o alquimista Paracelso, que, dizem, usava uma echarpe colorida, que Jorge Ben interpretou como uma gravata florida, fazendo referência às plantas que o médico suíço usava para produzir medicamentos.
O nome de “Errare Humanum Est” é baseado no provérbio e latim, que significa “errar é humano”. Aí começa a viagem mesmo. Porque a música vem carregada de distorção, que traz uma experiência quase sinestésica, e a letra vem com aquele papo de que os deuses dos povos antigos eram extraterrestres, ou astronautas. Em 1974 estava rolando a Guerra Fria, então dá para passar pano para a referência a essa teoria pseudocientífica e um tanto racista de um senhor europeu que não será nomeado nesse texto. Mas a música é boa, viu?!
“Pedrinho vai ser papai!”, começa Jorge Ben. “Quem vai ser papai?”, pergunta uma voz feminina, e, talvez, todo mundo que estava escutando. “Menina mulher da pele preta!”, ele responde, com o corte seco na fofoca. Quem é Pedrinho? Como tá o filho de Pedrinho hoje? Qual é a relação dessa criança com a alquimia (vai que…)? São muitas questões e poucas respostas. Apesar disso, “Menina Mulher da Pele Preta” é um samba muito gostosinho. O nosso inimigo do disse me disse exalta a figura de uma mulher negra e destaca a beleza e feminilidade dela. Certíssimo.
Em "Eu Vou Torcer", Jorge Ben coloca o sotaque carioca em destaque e canta que vai torcer pelas “moçax bonitæx” e pelo Mengão. Nesse sambinha, ele também cita mais um alquimista: Santo Tomás de Aquino. E ainda diz que vai torcer por um tal Gato Barbieri, que era um saxofonista argentino e eu sempre achei que fosse um gato de verdade.
A última música do lado A, “Magnólia” parece ser uma música romântica, de exaltação da amada, que pode ter esse nome ou ser representada pela beleza da flor. Mas, de novo, Jorge Ben vem com o papo de nave-mãe e deuses astronautas. Ficaria difícil defender se a música não fosse uma obra de arte do samba com violinos.
Agora, sim, uma música sobre amor. Em “Minha Teimosia, Uma Arma pra te Conquistar”, Jorge brinca com a ideia da persistência, quando a "teimosia" é uma metáfora para a determinação em conquistar aquele alguém especial, com leveza e humor. Mas não se engane, que tem referência a alquimia de novo. Que vamos ignorar, porque sim.
“Zumbi” é a música mais forte do disco. Pelo contexto histórico, de luta pelos direitos civis dos negros. Pelo instrumental, com arranjos de cordas que dão um ar mágico. Pela letra, que valoriza a história negra mesmo depois de ser arrancada de sua terra. Os nomes Angola, Congo, Benguela, Monjolo, Cabinda, Mina, Quiloa e Rebolo são designações étnico-regionais dadas aos escravos pelos portugueses. “Eu quero ver quando Zumbi chegar o que vai acontecer”, canta Jorge Ben em tom quase ameaçador. Uma homenagem justa à figura do último dos líderes do Quilombo dos Palmares, o maior dos quilombos do período colonial, ao símbolo da resistência negra, que nunca aceitou a escravidão e lutou por sua liberdade até o fim.
“Brother” é a única música em inglês do álbum. É um gospel com o suingue do soul. Ela tem uma levada gostosinha também. E, não sei o porquê, sempre achei que a Los Sebosos Postizos, projeto paralelo da Nação Zumbi, tivesse um cover dessa música, mas não tem. Viajei…
Adivinha quem é o rapaz de “O Namorado da Viúva”. Ele mesmo, Nicolas Flamel. O próprio Jorge Ben já confirmou isso, até. Para quem estava regulando informação no começo do disco, aqui temos uma fofoca da boa. A gente fica sabendo como estava o tal moço, que as pessoas reagem negativamente ao namoro dele com a viúva Perenelle Flamel e que ela tem “dote físico e financeiro invejável”. E o sambinha tem uma das melhores linhas de baixo do disco.
“Hermes Trismegisto e sua Celeste Tábua de Esmeralda” é a única que não foi composta por Jorge Ben. Ela é creditada como “Tratado Hermético Escrito pelo Faraó Egípcio Hermes Trismegisto e Traduzido por Fulcanelli”. Aqui, os alquimistas não só chegaram, como estão fazendo um condomínio. A música tem poucas mudanças em relação ao texto atribuído a Hermes Trimegistos, que aparece em obras de alquimia como o princípio filosófico dela. Vale a pena ler o texto completo da tábua de esmeralda.
Fechando o disco, “Cinco Minutos (5 minutos)” também tem um quê de hermetismo. Porque os tais cinco minutos não seriam usados para retocar o protetor solar ou arrumar o cabelo. Vários guias esotéricos indicam ações de, olha só, cinco minutos. Quando Jorge Ben canta “Não sabe o que perdeu, pois você não viu, não viu, não viu como eu fiquei. Dizem que foi chorando, sorrindo, cantando. Os meus amigos, meus amigos, até disseram que foi amando, amando”, será que temos ações conscientes envolvidas? Fica aí a reflexão. E essa, sim, tem cover da Los Sebosos Postizos.
Essa foi mais uma publicação do pega uma ficha aí. Muito obrigada a você que chegou até aqui.
Até a próxima!